Reflexões Psicanalíticas Sobre o Livro e o Filme A Elegância do Ouriço
Como uma criança se transforma em adulto? Quais são as conseqüências dessa transformação? Estas questões já intrigaram muitas pessoas, de modo que algumas as consideram questões fundamentais.
O filme Le hérisson, dirigido por Mona Achache, adaptação para o cinema do romance A Elegância do Ouriço (L’élégance du hérisson), da escritora marroquina Muriel Barbery, é uma prova de que outras pessoas não apenas consideraram essas questões muito importantes, como também trabalharam bastante para respondê-la. O filme suscita as mais diversas associações. Aos poucos elas começam a fazer sentido e a tomar forma. O fato de ele ser narrado por uma jovem garota, recém ingressa no difícil período da puberdade, é muito significativo.
O surgimento das chamadas “características sexuais secundárias” na jovem mulher causa um verdadeiro terremoto em sua vida. A regularidade do ciclo menstrual a convida a pensar sobre o significado de ser uma mulher. A atuação dos hormônios femininos em seu corpo, moldando-o e conferindo-lhe os primeiros traços de mulher, impõem a ela um enigma fundamental: “quem sou eu”? “Sou criança ou mulher”? “Com quem devo viver, agora que não pertenço mais aos meus pais”? Creio ser este o motivo responsável pela mobilização da garota a investigar, interrogar e registrar, através de suas filmagens, o cotidiano dos adultos ao seu redor.
Triste e solitária, a velha síndica do prédio passa a viver a vida com intensidade após conhecer um misterioso homem. Solitário, mas com muita vontade de viver, ele transforma a vida dela, conferindo-lhe mais graça e beleza, de tal maneira que ela passa a se envolver mais com os outros. E justamente ao demonstrar um grande envolvimento com o mundo ao seu redor – ajudando um bêbado miserável incapaz de atravessar a rua – ela morre. Ela morre exatamente como morreu Anna Karenina, a heróica personagem do livro de Tolstoi: atropelada (um carro, no caso da velha síndica, um trem, no caso da heroína russa) no auge da sua transformação.
Entendo a morte como uma metáfora da falta, do limite, do fim e, sobretudo, da perda. Desde o nosso nascimento experimentamos muitas mortes, que podem abrir o caminho para novas vidas. Perdemos o seio materno, mas aprendemos a dizer o que desejamos. Saímos das fraldas para aprender a andar e cair. Ao crescer, perdemos o fascínio de todos pelo nosso encanto de criança inocente, mas somos estimulados a sair de casa e conquistar o nosso lugar no mundo. A partir da puberdade, com todas as transformações físicas e psíquicas que esta fase acarreta, tudo isto é revivido intensamente. Perde-se a idealização infantil que tínhamos pelos nossos pais, pois ela já não se sustenta mais. Como consequência disso, não é mais possível confiar incondicionalmente nos mais velhos. Torna-se necessário e imprescindível fazer escolhas, sem saber exatamente aonde elas podem levar.
Porém, penso ser mais crítico nisto tudo o fato do jovem vislumbrar a sua saída de casa e a consequente separação dos pais num momento em que ainda não é possível dar este passo. Pensando desta maneira, não é por acaso o fascínio da garota, narradora desta estória, pelo peixe no aquário. Ela percebe que tanto o peixe quanto ela estão na mesma situação: enquanto ele fica enclausurado e protegido no aquário, ela permanece enclausurada no seu quarto. Sua atitude de tirar o peixe do conforto jogando-o na privada parece-me uma primeira tentativa de sair da posição passiva, fazendo com o peixe o que ela espera que alguém faça com ela: atirá-la para fora do quarto, para fora da casa da mãe. Mas para ter êxito neste movimento de separação e mudança, é necessário deixar o passado – a infância – morrer. Neste sentido penso que ao planejar “se matar” ao completar 12 anos ela decide deixar a criança que ela já foi um dia morrer, ou seja, se desligar da infância e se aproximar do cotidiano dos adultos, que ela olha com tanto cuidado e interesse através das lentes da sua câmera.
O fato de ela reconhecer a contragosto os limites e as faltas da mãe aparece quando ela diz que a mãe faz análise há dez anos e toma remédios para controlar a angústia. Está implícito nesta frase o reconhecimento de que ela não é mais aquilo que falta para completar a sua mãe, para fazê-la completamente feliz, assim como sua mãe já não é mais aquela rainha majestosa, onipotente e onipresente, como ela aparentava ser durante a sua tenra infância.
O sonho contado ao analista pela mãe a respeito da queda de um dente parece ilustrar muito bem a situação na qual a garota se encontra: assim como o dente, ela também é um pedaço da mãe que está caindo. E como é impossível saber o que vai acontecer após a queda do dente, a morte da velha síndica, a transformação da garota narradora em uma mulher, a história chega ao fim.
Não obstante, nossa investigação continua. Cabe agora refletir a respeito do título: “a elegância do ouriço”. Comecemos pensando a semelhança, senão biológica, pelo menos literária, entre o ouriço e o porco-espinho. Na história da filosofia, há um conhecido aforismo que ilustra a condição humana com a metáfora da difícil vida de um grupo de porcos-espinhos numa fria noite do inverno europeu. Ela é citada por Freud em seu artigo Psicologia de grupo e análise do ego (1921/2006), ao falar sobre as razões que levam os seres humanos a viverem em grupo sobre a forma de massas sob a influência de um líder, e os problemas resultantes dessa união:
“Um grupo de porcos espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. Dessa maneira foram impulsionados para trás e para frente, de um problema para o outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam toleravelmente coexistir”. (p. 112, n1)
Deve-se prestar atenção nesta citação, pois ela será o fio condutor de uma leitura mais ampla desta obra (tanto o livro quanto o filme).
Uma segunda leitura, também válida e relevante, deve tomar em conjunto as duas narradoras da história. Renée e Paloma constituem (cada uma seu próprio modo) duas vozes: uma velha, a outra jovem; uma pertence à plebe, a outra à aristocracia. São, afinal, dois olhares críticos sobre a frança e a Europa atualmente. São críticos em relação ao modelo de educação, política e cultura exportado do “velho mundo” – sendo Paris o seu epicentro – para o “resto do mundo”.
Este modelo é representado pelo condomínio no qual as duas vivem. As roupas exibidas pelos moradores, assim como os seus modos, seus diálogos, suas atitudes e particularmente seus bichinhos de estimação são os signos através dos quais o leitor é convidado a mergulhar na história para decifrá-los.
Feitas essas considerações, atentemo-nos na seguinte passagem: “A Sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.” (Barbery, p. 152)
Como não associar essa passagem à célebre símile de Schoppenhauer?
Se pensarmos assim, podemos entender a personagem da Sra. Michel como a distância ideal a que se refere Schoppenhauer em sua símile: ela não está perto demais dos outros, para não ferir e nem ser ferida; tampouco está longe demais, correndo o risco de morrer na frieza do isolamento. Esta distância ideal (ponto ótimo da equação afastamento-aproximação dos porcos-espinhos durante a noite de inverno) confere elegância a quem é capaz de sustentá-la e mantê-la. Elegância do ouriço, bichinho mais gracioso e sublime que o porco-espinho, seu primo pobre e selvagem.
Outra questão fundamental que se impõe no decorrer dessa história é: como usufruir das grandes conquistas de nossa cultura – filosofia, literatura, psicanálise – na condição de reles plebeu ou de jovem inexperiente, pessoas sem voz ativa num mundo comandado por adultos? Será o usufruto dessas conquistas privilégio de uma elite ou estarão elas também à disposição das pessoas simples? Pessoas que, na falta de um status que lhes abram as portas da cultura, dão um lugar central a seu desejo e suas inquietações, ousando viver como um verdadeiro artista, pensador e criador?
Para quem é psicanalista hoje, é muito grande a relevância do livro e do filme. Ao questionar ostatus quo vigente, no qual o pensamento, a beleza e o desejo do homem contemporâneo tornaram-se objetos de luxo, mas não de usufruto, Muriel Barbery sacode o leitor ao permiti-lo entrar em contato com o seu lado adolescente, criativo, produtivo e ativo, ainda que muito simples.
Enfim: ao lermos A Elegância do Ouriço, podemos compreender, nos dias de hoje, a já antiga afirmação de Freud de que se aprende a psicanálise com os grandes escritores.
Referências
Freud, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego (1921/2006). In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. 18). Rio de Janeiro: Imago, 2006.
Barbery, Muriel. A Elegância do Ouriço. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.