O filme Abril Despedaçado (drama dirigido por Walter Salles em 2001 numa coprodução entre França, Suíça e Brasil) é uma transposição e adaptação do livro de Ismail Kadaré, escritor albanês que criou uma história sobre guerras de família no leste europeu. O diretor Walter Salles adaptou-a para o sertão nordestino. O filme foi rodado nas proximidades de Ibotiranga, no sertão baiano, e foi finalista dos prêmios Globo de Outro e BAFTA na categoria melhor filme e vencedor do prêmio Havana melhor diretor.

Não é desconhecida, para nós brasileiros, a existência de guerras de família ainda hoje nessa região. Mas o filme se passa no início do século XX. O contexto da história que nos é apresentada é do período de transição dos senhores de engenho e da cultura canavial – que tem o final decretado com a abolição da escravidão no final do XIX – mas ainda anterior ao êxodo rural que impulsionou o crescimento e a superpopulação das metrópoles brasileiras.

Diante da penúria cada vez maior, duas famílias vizinhas guerreiam pela pouca terra que lhes resta. Essa situação acentua o drama da história: desde o início vemos que o sangue derramado é em vão. É miséria em troca de miséria. Afinal, todas elas são muito pobres, de pouquíssimos recursos, ganham cada vez menos com o cultivo da cana de açúcar.

Afinal, por que guerreiam?

O fator econômico ajuda-nos a compreender o drama do conflito, mas não explica sua causa nem sua motivação. Aliás, ao longo do filme, a falta de sentido para o conflito é cada vez mais notável. Percebe-se que ambas as famílias já não sabem mais como teve início o litígio. Sabem apenas que ele existe e deve continuar.

A guerra passou de substantivo a verbo intransitivo: guerreiam porque guerreiam.

A camisa manchada de sangue é uma imagem que se repete ao longo do filme. Remete à violência subjacente à condição humana. Ela marca o intervalo entre as mortes. O breve tempo de paz possível entre uma luta e outra.

Violência que passa de geração em geração. E, não havendo condições culturais suficientes para por um termo ao litígio, vê-se uma regressão. A única lei que vigora é a mais antiga na história da civilização: “olho por olho, dente por dente”.

Feitas essas considerações iniciais sobre a trama, abordarei agora seus personagens.

O personagem narrador da história não tem nome. Os outros o chamam apenas de menino. Além de uma provável homenagem a Vidas Secas de Graciliano Ramos, uma das narrativas fundadoras da literatura sobre o sertão, essa ausência de nome é também uma falta que nos permite pensar sobre os meninos daquele sertão. Não havendo um nome, não há, tampouco, um lugar a ocupar, uma função a exercer ou um sentido a criar. O nome é um batismo não apenas no sentido religioso, mas especialmente do ponto de vista da vida psíquica. Uma palavra que, de tão exterior, torna-se a mais íntima.

Entendo a ausência de nome como três sentidos possíveis que estão intimamente relacionados.

1) Deslocamento: a tônica ou “acento psíquico” do conflito entre os homens no filme é deslocada para o personagem narrador; e através deste, aponta para uma verdade: são todos meninos. Todos movidos pelo ódio, ninguém negocia nem tolera qualquer tipo de perda ou frustração.

2) Repetição: Uma repetição no sentido daquilo que Freud denominava como neurose de destino, de um imperativo: “vós sereis sempre meninos!” Essa é a herança, a camisa manchada de sangue que passa de geração em geração.

3) Conflito: Confirmando a primeira e desenvolvendo a segunda, temos essa terceira . Tonho, o único dos irmãos do personagem narrador que ainda não morreu no conflito, tem os seus dias contados. Ele pede uma trégua ao patriarca da família rival. Neste momento, ele é questionado sobre sua idade (“quantos anos tu tens”, pergunta o patriarca; “dezenove”, responde Tonho) e sua experiência sexual (“tu já conheceu o amor rapaz?”; “não senhor”, balbucia Tonho; “e nem vai conhecer!”, arroga o velhaco).

Portanto, Tonho também é “menino” (ainda não conheceu o amor). A pergunta do homem cego é fundamental. Questiona a posição subjetiva, não somente a de Tonho, mas a de todos os personagens do filme. Afinal, naquele contexto belicista e fatalista, quem terá conhecido o amor? Pelo que consta, nenhum deles. Todos, portanto, meninos.

A descoberta do amor vai se destacando aos poucos na história.

Ele aparece discreta e repentinamente. Uma dupla de artistas circenses atravessa o sertão. Carregam consigo fantasias, livros e também boas doses de humor e cachaça. Acabam passando pelo caminho dos dois irmãos e se envolvendo com eles. Forma-se entre eles um laço social: o primeiro e único que não é baseado na guerra ou vingança.

A partir desse laço, a história muda de rumo. A morte anunciada fica em suspenso, e vemos o desenrolar de outra história. Uma história de amor.

O encontro com a dupla de artistas na estrada é o encontro com o amor.

Tonho conhece o amor: apaixona-se por Clara. O Menino conhece a literatura: apaixona-se pela “Sereia” (Clara) ao ser presenteado por ela com um livro de histórias sobre o fundo do mar. Os dois irmãos deixam de ser meninos: conhecem finalmente o amor.

Um livro com histórias sobre o fundo do mar: é preciso olhar com atenção para este objeto transformar da narrativa. O mar: lugar onde os sonhos se realizam, onde há fartura de peixes e sonhos. A terra: o oposto do mar. Espaço seco e sem esperanças. Eterna repetição do mesmo. A única substância líquida capaz de regar a terra do sertão é o sangue de seus homens.

Além do filme em questão, vemos que estas metáforas já estão presentes nas narrativas sobre o sertão. Profetas, poetas e líderes de revoltas populares já afirmaram que um dia “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. Dentro desta realidade discursiva, o mar é sinônimo de grandes mudanças. Há também aquela canção que diz “foi um rio que passou em minha vida” para se referir as mudanças provocadas por um grande amor. Neste caso, a mudança tem um caráter mais erótico e intimista.

Na cena em que Tonho descobre o sexo, chove sobre os dois amantes. O menino Pacu se apropria do laço. É como se ele pegasse para si algo da experiência do irmão com a Sereia (Clara). Como se através desse ato ele fosse capaz de dizer ao irmão: “também sou homem Tonho, também descobri o amor”.

Realmente, esta é uma cena da mais alta polissemia. Através dela, a história se abre para diferentes caminhos possíveis. Proponho ler esta cena através de sua relação com uma outra cena, anterior. Uma das cenas mais belas, a meu ver. Tanto pela fotografia quanto pela sutileza do detalhe.

Na ocasião da apresentação dos artistas, a moça pede a Tonho que a faça girar, balançando a corda. Então vemos Tonho girar a corda contínua e interruptamente.

A moça gira e pede para ele continuar a girar. É notável a satisfação e alegria em sua voz nesta cena que nos absorve e nos distancia do tempo do filme. Esquecemos de todo o resto, envolvidos com o “gira-gira” dos dois, destacando-se ao fundo um céu azul e infinito.

Na cena em que os dois se amam dentro do casebre sob a chuva, cena que não é tão intensa quanto a primeira, podemos imaginar sentir e perceber a força daquela para os personagens. Mas a força que percebemos não está nesta segunda cena, está na primeira. A tensão e a força da primeira cena se resolvem na segunda.

Como isso acontece?

Bom; faz parte da técnica – do cinema, da literatura e, veremos a seguir, da psicanálise – criar uma linguagem dinâmica que ora se dispersa, ora se concentra na narrativa principal. Essa técnica não é estranha à psicanálise. Está fundamentada num mecanismo muito comum nos sonhos. Chama-se deslocamento (Freud) ou metonímia (Lacan). Consiste em retirar a tônica (uma palavra, no caso da literatura e do sonho relatado ao analista pelo paciente) de uma cena e colocá-la em outra – que pode ser anterior ou posterior.

Podemos percebê-la e manipulá-la na literatura e no cinema porque ela faz parte de nossa vida psíquica. E talvez por ser tão fundamental na formação do sonho, seja também tão importante para a linguagem romanesca e cinematográfica – ambas com fortes ressonâncias do universo onírico.

Ao perceber a técnica do deslocamento presente nos sonhos, Freud dedica-lhe um capítulo em sua obra inaugural. O que também acontece em outros trabalhos de destaque: sobre os lapsos que cometemos no dia a dia – A psicopatologia da vida cotidiana (livro mais traduzido de Freud em vida que popularizou a psicanálise mundo afora); o humor, as piadas e as tiradas espirituosas – O chiste e sua relação com o inconsciente; e os sintomas neuróticos – Inibições, Sintoma e Angústia, entre outros.

Freud se referia a todos esses mecanismos e processos por formações substitutivas. O que revela a forte relação existente entre inconsciente e linguagem. Relação essa que será, anos mais tarde, percebida e desenvolvida por Lacan, que se referirá aos mesmos como formações do inconsciente. É interessante ressaltar isto: o fato de haver duas denominações diferentes para o mesmo conjunto de processos. O inconsciente trabalha com substituições e efeitos de sentido, tal como a linguagem. Freud ressalta um aspecto, Lacan outro, mas um está contido no outro. E de todos esses aspectos se depreende a íntima relação entre a psicanálise e as artes.

Voltemos à cena em questão para ver esta relação.

O gozo sexual dos amantes, em sua forma mais explícita, é apresentado de maneira implícita,deslocado, no gira-gira entre Tonho e Clara. Vemos ela pedindo a ele que faça movimentos de vaivém, sem parar. Ela em cima e ele embaixo. Só que ela gira para os lados, sem encostar nele. A performance sexual é substituída – ou seja: deslocada – para a performance estética. A cena nos emociona com sua beleza, sua alusão ao sexo, ao invés de nos excitar com uma pura exibição sexual.

Esta cena sublime confere uma intensidade extra à cena dos amantes no casebre sob a chuva. Sentimos o envolvimento de ambos com uma força e intensidade que não seriam sentidas não houvesse a primeira cena.

Na cena final, quando Tonho olha para o mar, vemos uma resolução dos conflitos do filme. Uma resolução que aponta para o além, o infinito, o horizonte distante.

O amor – simbolizado no filme pelo elemento líquido: o riacho que secou e deixou só as almas; a chuva que de repente cai sobre os amantes; o fundo do mar mítico, onde sonhos e desejos se realizam – não é apenas um sentimento volátil ou uma visão ingênua do mundo. É uma força que une, sintetiza, congrega.

É certo que o amor pode ser destrutivo também. Por isso a psicanálise diferencia duas formas:narcísico e objetal. Diferente do amor narcísico – que demanda do outro aquilo que ele não pode dar – o tipo de amor no qual a psicanálise aposta é o amor objetal. Um envolvimento amoroso com o outro apesar das diferenças. Reconhecendo essas diferenças e se estabelecendo a partir delas. Um laço com outro as minhas expectativas, ilusões, ideias – representados no filme pela guerra e pelas tradições “nesse país os mortos comandam os vivos” diz a mãe ao pai – já não são mais um obstáculo para eu me relacionar com o outro.

Seguindo a trilha destes significantes, podemos ver que ao contemplar o horizonte, Tonho já desistiu da guerra. Já conhece a beleza e o amor.

O menino morreu, mas o homem acaba de nascer.

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