O livro Balzac e a Costureirinha Chinesa, de Daí Sijie, e o filme, dirigido pelo próprio autor, fornece-nos um panorama de um contexto muito diferente do nosso, mas no qual vivem pessoas como nós. A história se passa em 1971, nas Montanhas Fênix. Localizada no interior ermo e bucólico da China, ela recebe dois jovens da cidade grande. Cada um deles carregava consigo um objeto estranho. O primeiro, um livro; o segundo, um violino. Os dois jovens, que se chamam Luo e Ma, dão explicações às autoridades locais sobre a origem e a função dos objetos, com muito cuidado e criatividade, com medo de perdê-los.

Logo após a apresentação, os dois amigos são iniciados nos trabalhos braçais do campo e das minas de carvão. É no momento em que ocorre essa iniciação que eles descobrem o paraíso, numa belíssima cena elaborada especialmente para o filme: jovens garotas tomando banho de cachoeira. Luo, ao se aproximar das garotas, cai num buraco, fazendo um grande barulho que anuncia a chegado do intruso para as jovens garotas da cachoeira. Uma delas simpatiza com Luo, “o garoto caído” e abre um espaço para que ele e Ma se aproximem dela.

O linguajar da garota – tal qual o de seus conterrâneos – é muito simples: utiliza a expressão “verme do dente” para o termo científico “cárie”, e ao verem um pequeno despertador com um desenho de um galo ao fundo, perguntam aos dois amigos: “Como o galo canta dentro do relógio?”. Essas perguntas revelam a curiosidade da garota. Depois ela diz: “sempre imaginei como seria o mundo em outros lugares”. Vale apontar aqui o que atrai ela nos dois rapazes: a marca do estrangeiro. Isso ficará mais claro no final da história.

Os garotos percebem isso muito bem, e começam a alimentar o interesse da bela costureirinha contando histórias para ela e os outros camponeses. Os dois jovens aprendem uma lição importante a respeito da arte da sedução: improvisar. Ao serem enviados ao cinema para depois contarem a história do filme “do Povo”, eles fazem uma adaptação de uma história ocidental já conhecida por eles, através dos livros. Eles conseguem conciliar o que seria “uma ordem” (a demanda do Outro) com o seu próprio desejo, e suscitar em cada aldeão a falta, a saudade de ouvir as belas histórias contadas pelos dois rapazes da cidade grande.

Na busca por ampliar esse prazer de seduzir a mulher desejada com belas, excitantes e dramáticas histórias, eles vão ao encontro de Quatro-Olhos procurar os livros proibidos que ele tem. A marca do estrangeiro aparece novamente: os livros desejados e cobiçados são livros de outro lugar, de outras línguas, enfim, de outras culturas. Com efeito, esses dados são importantes para a compreensão da frase final da Costureirinha. E assim eles realizam a sua primeira grande transgressão: o roubo dos livros. Após roubarem os livros, os três, agora já com uma forte união estabelecida, encontram um esconderijo para o seu tesouro: uma caverna.

O tempo passa e suas noites são absorvidas pela leitura dos livros encontrados. Uma frase, pronunciada por Luo com declarada paixão no início do dia,  expressa a importância dessa descoberta: “Incrível. Sinto que o mundo mudou. O céu, as estrelas, os sons, a luz, até o cheiro dos porcos. Tudo mudou. Úrsula Miruoet!”.

Logo após essa descoberta, essa paixão pelas personagens de Balzac, ele pega malária. Podemos entender essa seqüência de acontecimentos de uma maneira simbólica: a descoberta das mulheres nuas em contato com a natureza, a proximidade e paixão pela Costureirinha, somado ao prazer pela leitura de Balzac, seguido pelo adoecimento, padecimento de malária: mais do que uma doença qualquer a malária aparece na história como metáfora do “estar ardendo de amor”, da “febre do desejo” de conquistar a Costureirinha, de apreciar as mulheres, de ter vida erótica, despertada pela literatura. Tanto que, em seguida, ele (Luo) é “curado” pela Costureirinha e, ao ser curado, rouba-lhe um beijo, que dá início a uma grande paixão vivida entre os dois. Ele foi o primeiro a falar com ela, a ser conhecido por ela, em função de sua queda na cena da cachoeira. Ele leva Balzac até ela, e ela vem se abrir para ele através de Balzac. É o grande escritor francês que os conduz à cachoeira onde eles se desejam e se amam. Lugar onde Luo/Balzac engravida a Costureirinha.

Há uma cena (mais chamativa e interessante no filme do que no livro) em que Ma escuta com atenção a uma canção antiga cantada por velho moleiro. A canção conta a história de um pássaro diferente, que faz coisas um pouco estranhas e inusitadas para uma ave. Ao longo da canção, fica claro que o pássaro ao qual ela se refere, na verdade, é aquela parte do corpo do homem que o caracteriza enquanto tal: o pênis. Apesar dessa relação metafórica entre a palavra pássaro e a palavra pênis, subentendida, Ma demora muito para descobrir essa relação. O velho se diverte com ele e ri de sua ingenuidade. Quando ele finalmente compreende o sentido da canção do velho moleiro, começa a compor novas canções em seu violino. É notável a inspiração artística provocada por esta incrível descoberta. O contato com a sexualidade pela via do humor e da espirituosidade o motiva a compor.

Momento marcante nessa história, de alta tensão, tanto no livro como no filme, é a negociação do aborto da costureirinha. Além do próprio tema, polêmico por si mesmo, devemos acrescentar o risco de vida dos dois amantes, unidos pela paixão, separados pelos costumes locais: era expressamente proibida a união entre pessoas de classes sociais tão distintas e igualmente vetada a união através do casamento de qualquer camponesa menor de 25 anos. A pena para esta transgressão era a expulsão da aldeia e a exclusão de todas as outras. Isolamento eterno. Sabendo disso, Ma, amigo do casal, pede para um médico realizar um aborto.

Depois de algumas recusas, Ma finalmente consegue convencê-lo a ajudá-los apresentando a ele a transcrição de um trecho de um livro de Balzac. Feita na parte de dentro de seu casaco de pele. Ele promete dar o livro original ao médico como recompensa pela sua ajuda. O médico fica parado, lendo a transcrição no casaco de pele e apreciando o estilo daquela tradução. A literatura vale uma nota preta, vale ouro, para ele. E uma sonata de Mozart tocada por Ma é quem guia o médico no procedimento arriscado feito clandestinamente. Uma cena intensidade na qual a literatura e a música motivam e guiam as pessoas a se posicionarem de acordo com o seu desejo, além do que é imposto a elas pelo Outro.

Muito bem. Feitas essas considerações, vamos nos concentrar agora nos livros, o tesouro perdido pelo qual lutam Luo e Ma, fio condutor maior da narrativa da história. No outro lado do mundo, há cerca de quatro décadas atrás, todos os livros que não fossem manuais de instrução de atividades extremamente técnicas, ou o livro que só apontava as qualidades e poderes do líder do Estado, eram proibidos. Uma severa restrição da curiosidade intelectual adulta era imposta. O que, de certa forma, é compreensível: para se obter o máximo possível de controle social, nada melhor do que controlar o pensamento das pessoas. Eliminando-se através da palavra todo e qualquer estímulo à imaginação, à fantasia e ao erotismo, assegura-se que as pessoas estão pensando sempre nas mesmas coisas: trabalho, deveres, compromissos, dinheiro, economias, etc.

Com efeito, aprendemos com Freud que a curiosidade intelectual e o prazer de usufruir do pensamento pesquisar, investigar, descobrir ou aprender são o resultado do direcionamento de outra curiosidade. Mais arcaica e primitiva, a curiosidade sexual infantil é direcionada para os fins culturais. Nesse sentido, é marcante a cena na qual os dois amigos finalmente encontram o “tesouro escondido” do personagem quatro-olhos. Talvez não seja por acaso que Luo compare aquele momento com a cena de um filme: foras da lei abrem uma maleta repleta de dinheiro. Cada um deles sente um misto de emoção e ódio, tal qual jovem ao iniciar-se na vida erótica: emociona-se ao descobrir os prazeres que é capaz de produzir e receber; revolta-se contra os pudores e recalques que atrapalharam e adiaram seu caminho até ali.

Essa comparação não é gratuita: acredito ser Balzac e a Costureirinha Chinesa uma história sobre a literatura como fonte de descobertas sexuais. Sabe-se que durante muito tempo a literatura foi a fonte secreta de muitos jovens. Ainda hoje, com a imposição de um culto ao prazer que iguala a vida erótica dos seres humanos a uma atividade aeróbica rotineira, a literatura mantém o seu lugar de descoberta do desejo. Pois ela ensina seus leitores a valorizar a fantasia e a imaginação, terra fértil de onde brota o desejo. Com seus personagens e suas aventuras, aprendemos muito mais do que com uma simples leitura esquemática de um livro “científico” sobre educação sexual (quase sempre restrito às lições elementares de anatomia humana).

Deste modo, os filhos da elite burguesa da China precisam ir para bem longe das capitais para conseguir mergulhar nas grandes obras de Balzac, Flaubert, Romain Rolland, Dickens, Dostoievski, e companhia. Esse tesouro tão precioso precisa ser roubado de seu guardião, o personagem quatro-olhos, alguém que, como uma especialista ou acadêmico, valoriza o patrimônio das obras, mas renega o caráter subversivo da literatura.

Ao roubarem o tesouro, eles o distribuem entre os pobres de espírito e de cultura, camponeses analfabetos ávidos por alguma história que lhes toque a alma. Ma e Luo transforma-se numa espécie de Robin Hood moderno que tira dos ricos para dar aos pobres. As histórias por eles narradas espalham-se como uma peste entre os aldeões. Dentre eles, a mais atingida por esta peste é a Costureirinha. Após descobrir o próprio corpo (o sexo com Luo, a gravidez inesperada) e a própria palavra (aprende a ler, escrever e apreciar um bom livro), ela deixa de ser uma camponesa ingênua para transformar-se em uma mulher madura, capaz de sustentar seu desejo.

Ela vai embora, modernizada e ocidentalizada. O amor dela não era por Luo, mas por Balzac. Aprendeu com ele que “a beleza de uma mulher é um tesouro sem preço”. Ali ela aprende, mas também ensina algo de fundamental para o jovem Luo: apesar do amor e do desejo entre os dois, ela não era dele, nem de nenhum homem. Isto revela algo a respeito do universo feminino: o medo de deixar de ser bela, desejada e amada.  A costureirinha é iniciada, deflorada e fecundada não por Luo, mas por Balzac. E seu aborto é uma metáfora de tudo aquilo que ela deseja deixar para trás, abandonar (palavras que representam alguns dos sentidos do verbo abortar): o vilarejo, a solidão, a vida no campo, os dois rapazes.

É para o lugar de Balzac, a cidade grande, o meio urbano, o centro da civilização, que ela se dirige. Este é o lugar em que ela vai buscar ser amada. Deste modo, Balzac inicia cada um dos três jovens no mundo, na vida adulta. Tal qual o pai que transmite algo do seu saber sobre as coisas da vida aos filhos para em seguida direcioná-los para fora de casa. Para dentro da vida. Do mundo.

Para aprendermos algo com os grandes escritores, é necessário mergulhar na banalidade da vida cotidiana. Sem receios. Carregar baldes de esterco nas costas, passar frio em noites da montanha, ser devorado por mosquitos do pântano, aprender a falar com outras palavras aquilo que não se pode falar diretamente. Tudo isto implica em sujar-se, entrar em contato com o primitivo. Mas o que há de mais primitivo no ser humano do que a sexualidade e a agressividade, essas duas constantes que se impõem ao tempo, à história e à civilização?

Portanto, Ma e Luo não são apenas dois jovens vítimas da reeducação imposta na China por Mao Tse Tung, mas todo e qualquer jovem que precisa sujar as próprias mãos e arregaçar as mangas para conseguir lidar com as imposições do Outro e o próprio desejo. Sustentar o próprio desejo com dignidade e autenticidade diante das imposições da família, do estado e da cultura em que se vive é a grande aventura, inspiradora de muitos livros e filmes e canções. Uma aventura que se passa na banalidade do dia-a-dia, na aparente insignificância dos erros e sonhos humanos. Transformar essa banalidade e insignificância em histórias inesquecíveis é a tarefa dos grandes escritores. Escutá-la com todo o desejo e atenção é a marca da psicanálise.

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