A segregação e o preconceito são acontecimentos e atitudes comuns nas relações humanas. Suas manifestações mais brandas aparecem sob a forma de trotes ou gozações entre vizinhos e irmãos. Na rivalidade e estranhamento entre cidades, estados e países vizinhos.
Mas o que acontece quando as diferenças são as maiores possíveis? Uma análise franca e aberta ao diálogo deve começar por admitir que nunca é fácil lidar com as diferenças. De fato, é necessário um bom tempo de elaboração para conseguir ver no outro estrangeiro uma grande semelhança – enquanto seres humanos nós somos todos semelhantes – e não apenas as grandes diferenças.
É nesse sentido que o filme Welcome propõe ao telespectador uma reflexão inovadora sobre o tema. Duas histórias de amor se entrecruzam sobre o canal da mancha – Bilal e Mina, e Simon e Marianne – e denunciam o abismo que esse encontra entre a fatalidade da paixão numa cultura teocrática e a apatia do amor no estado laico moderno.
Dois opostos que interrogam o telespectador a respeito do limite do desejo.
Bilal, um refugiado Curdo do Iraque, faz o possível e o impossível para reencontrar Mina, sua namorada. Ela foi com a família para Londres. Ele conseguiu juntar dinheiro e energia para chegar até o Canal da Mancha. Ao chegar lá, ele é capturado pela rígida fiscalização. Sem ter para onde ir, fica à deriva.
Procura por notícias de Mina, a musa inspiradora para enfrentar o mar – distância que o separa de seu sonho.
Após um tempo perambulando pela cidade com os demais refugiados, Bilal decide atravessar o Canal da Mancha sozinho. Mas para isso ele precisa aprender a nadar. Ao solicitar as primeiras aulas ele conhece Simon, apático e antipático professor de natação. Um homem que está vendo sua mulher se afastar, mas não consegue fazer nada para se reaproximar dela.
Esses dois personagens, que à primeira vista não teriam nada em comum, se aproximarão cada vez mais ao longo do filme. Suas diferenças os aproximarão.
Afinal, como isso é possível: as diferenças que sempre produzem ódio e afastamento, levarem também à amizade e aproximação?
É possível compreender essa virada através do elemento do desejo. Bilal quer aprender a nadar e encontrar sua namorada. Simon, que já sabe nadar há tempos, e também durante muito tempo teve uma mulher em sua vida – mas não consegue mais valorizar nem uma coisa nem outra – vê no desejo de Bilal algo que ele já teve (a mulher amada) e alguém que ele já foi (um nadador). Algo que ele já teve, mas perdeu; alguém que ele foi um dia, mas há tempos deixou de ser.
Enfim, o desejo de Bilal é um espelho que mostra a Simon aquilo que ele perdeu: o amor e a coragem. Ao se deparar com essa falta, Simon se identifica com Bilal, e começa a apoia-lo, a torcer por ele. Um movimento de virada na trama que conduz a história para o seu desfecho.
Mas, antes de me deter no desfecho da trama, desenvolverei algumas reflexões.
O protagonista é curdo do Iraque. Essa origem não deve ter sido escolhida à toda. Um dos povos mais massacrados da história, atualmente o maior povo sem país sobre a Terra. Povo de origem nômade, espalhado em 4 países, em todos eles minoria étnica e vítima de violência.
Ironicamente, a palavra Welcome aparece uma vez apenas no filme. Ela está escrita no tapete de entrada do vizinho de Simon, um sujeito extremamente preconceituoso. Não há Welcome no filme: apenas pessoas batendo com a cara na porta. Ninguém é bem-vindo na vida do outro; ninguém recebe as boas vindas dos outros. Veem-se grupos fechados se afastando uns dos outros; pessoas se isolando em seus próprios casulos.
Não há lei que articule as diferenças, que promova o encontro com o outro. Nesse contexto tenso de intolerância transcorre o filme, do início ao fim.
Finalmente Bilal faz o seu ato heroico, no qual encontra seu destino trágico. Ele atravessa boa parte do canal a nado, mas morre antes de chegar à terra firme. A marinha inglesa devolve seu corpo sem vida para Simon, que se apresenta às autoridades como o pai de Bilal. Ele adota Bilal. Dá a ele um brinco/anel que era de sua mulher. Como uma transmissão de pai pra filho – “quando eu era jovem presenteei a tua mãe com esse objeto; agora é a sua vez de presentear a sua mulher com ele. É hora de seguir o seu caminho”.
O filho sai de casa. Isso do ponto de visto de Simon. E do ponto de vista de Bilal? Sim, ele também procura por um pai, um professor – sinônimo de mestre em alguns idiomas – alguém que lhe transmita algo.
O ato falho de Bilal – o esquecimento do endereço de Mina, anotado num pedaço de papel, no apartamento de Simon – interpretado espirituosamente (no sentido de que todo ato falho sempre é bem sucedido do ponto de vista do Desejo) é um convite para Simon seguir o seu caminho. Algo como: atravesse a rua, você também pode ir ao encontro de sua namorada.
Com efeito, Simon adota o desejo de Bilal, e vai até Londres encontrar Mina. Bilal morre, mas o desejo que o movimenta ganha vida própria: é através de Simon que ele chega até o seu alvo (Mina) e é então realizado.
Como podemos ler o final do filme, o desfecho da história?
O corpo sem vida de Bilal não aparece no filme; a última imagem que vemos dele é chegando perto de atravessar o canal da mancha. Após isso, restam apenas as imagens do caixão fechado e seus “restos libidinais”: a medalha do mestre, o brinco da mãe, etc. E a última imagem, a de um Cristiano Ronaldo goleador – um jogador conhecido pela velocidade, pelas arrancadas; um corredor ou Banza, tal como Bilal era conhecido pelos amigos no Iraque.
Trata-se de uma reflexão sobre os caminhos e a imortalidade do desejo. Como diz uma bela música de Milton Nascimento: os sonhos não envelhecem. Não, eles nunca morrem. Apenas se atualizam. Todo sonho ou desejo é antigo: remete ao nosso passado primitivo, tempo das primeiras separações e identificações. Tempo do estabelecimento dos ideais e da novela familiar.
A partir dessa leitura, podemos entender ele, o Desejo, como o protagonista do filme. Através de diferentes personagens – Bilal, Simon, Marianne, Mina – a história de seu percurso nos é contada.
O desejo é aquilo que permite ao ser humano ver no outro não somente um estranho ou rival, mas um próximo, um semelhante. O outro deixa de ser uma ameaça e torna-se um companheiro. Estamos todos em falta. Todos no mesmo barco.
Um aspecto importante do personagem Bilal é a respiração. Ou seja: Bilal e o fôlego. O saco na cabeça que o sufoca e provoca o seu fracasso. O fôlego que ele precisa para atravessar o canal da mancha. Desde o início do filme, está indicado que ele fracassará. Não tem fôlego para chegar até o fim. Este seria o limite de Bilal, ou melhor, o limite do desejo.
É possível entender que o limite do desejo é a morte. Diante da morte o desejo pode ser transmitido. Diante de nossa condição humana de seres desejantes – sendo a morte o mar que vemos em nosso horizonte – somente através do encontro com o outro podemos transmitir o desejo, deixar a nossa marca, e não nos tornarmos passivos diante da morte.
Após assistir este filme, a psicanálise poderia ser assim definida: um trabalho de fôlego, tal como a natação ou a literatura, que ao nos situar diante do horizonte da morte e da castração, possibilita a transmissão do desejo e o encontro com o outro.